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Daniela Melgaço: “quem viveu a mesma experiência, sente de outra forma”

Daniela Melgaço: “quem viveu a mesma experiência, sente de outra forma”

Publicado em
Texto: Bruno de Castro
Fotos: ZeRosa Filho
Colagem/Identidade Visual: Valdir Marte

Daniela Melgaço Veloso facilmente teria sido atendida pela instituição da qual hoje faz parte. Natural de Rocha Miranda, bairro de subúrbio localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, e filha de um casal interracial (mãe branca e pai preto), a jovem tornou-se defensora pública no Ceará pela política de cotas e vê histórias que poderia ter acontecido com ela própria (ou até de fato aconteceram) repetirem-se, dia após dia, nos balcões da DPCE em São Benedito, município distante 360 quilômetros de Fortaleza. Quase sempre, quem está “do lado de lá” é alguém de semblante parecido.

“Quem viveu a mesma experiência, sente de outra forma. É diferente de quem não viveu. E, quando a questão racial entra na conta, ela traz sempre outros aspectos. Então, não dá pra eu não entender uma pessoa negra que eu atendo. Tudo isso reflete na minha atuação como defensora e se torna uma responsabilidade muito grande. Eu me dou para aquela demanda. Se for algo envolvendo na área criminal, que eu considero gravíssimo, vou defender o máximo que posso”, diz.

Ela sabe. É grave porque cerca de 70% das pessoas presas no Brasil têm cor/raça. São negras. Em 2023, isso equivalia a 470 mil homens e mulheres. Em 2005, os negros eram 58% dos privados de liberdade no país. Os dados são do Anuário Brasileiro da Segurança Pública. Diante de um Estado que encarcera mais e mais, algo apontado por intelectuais negras como Michelle Alexander, Angela Davis e Juliana Borges como uma nova forma de segregação racial (novamente patrocinada pelo poder público, tal qual a escravização afro-indígena), a atuação da Defensoria torna-se essencial à garantia de direitos dessa população.

Daniela Melgaço é natural do Rio de Janeiro e atua como defensora pública na cidade de São Benedito

Ser uma pessoa negra com algum poder de resolução e estar diante de outra pessoa negra que precisa de acolhimento é, como ela crê, um jeito de “lidar com a maior gentileza possível”. A defensora avalia: “a entrada de pessoas negras por cotas é importante, mas a troca que a gente possibilita é muito relevante. Porque a gente traz experiências de vida que são só nossas. É a realidade do dia a dia. E, no fim das contas, todo mundo ganha, porque a gente atende com o sentimento de que aquela pessoa poderia ser um parente, um amigo… Mas, claro, em algumas vezes, as pessoas não reagem tão bem quando veem que a defensora sou eu. E tem pessoas que externam isso de forma positiva; uma surpresa boa”.

O MELHOR TRABALHO DO SISTEMA
Daniela fez o que brinca ter sido o “bingo das cotas” na universidade: entrou no curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) por ser negra, oriunda de escola pública e baixa renda. Ao compor a Frente Negra da Defensoria do Ceará, agora quer contribuir com revoluções por dentro da instituição e, principalmente, por fora, na sociedade. E fala isso com a convicção de quem já foi estagiária da DP na capital fluminense e já viu muita vida ser transformada graças à atuação de defensoras e defensores engajados(as).

“A pessoa já chega irritada na Defensoria, porque todos os outros lugares fecharam as portas. Ela chega desacreditada, achando que não vai dar certo. Quando descobre que pode dar certo, pede todo e qualquer tipo de apoio. E eu me realizo fazendo o que faço. Eu gosto dessa ideia de estar ali pras pessoas. Não me vejo fora desse lugar. Pra mim, a Defensoria é a instituição que faz o melhor trabalho do sistema de justiça, que é o de tentar reduzir desigualdades”, opina.

 

Ser defensora, entretanto, era algo que não lhe ocorria. A síndrome da impostora, bastante recorrente entre pessoas negras pelo fato de crescerem com muito mais referenciais negativos do que positivos sobre o que é ser negro, era mais forte. Prevalecia a sensação de que passar em um concurso público seria impossível, dadas as dificuldades que acumulava. Os indicadores sociais apontam que quem está na base da pirâmide social brasileira é justamente uma pessoa negra. Uma mulher negra, sobretudo a de pele escura.

Daniela tem a pele clara. E, ainda assim, coleciona episódios de exclusão. Foi só começar a circular nos espaços ditos mais “elitizados” que sentiu na pele o significado da própria origem. Lá, na periferia, não se falava em raça o tempo todo porque ser filha de mãe branca com pai preto era comum. Na “burguesia”, não. Quanto mais próxima a pele for do branco-europeu, melhor.

No Rio, o choque racial foi grande. Ao vir para o Ceará, ela percebeu silêncio e confusão. “É um pouco assustador como as pessoas não se reconhecem como negras aqui. Na [audiência de] custódia, tem um momento em que a pessoa presa é questionada sobre dados pessoais e quando chega na autodeclaração racial muita gente que visivelmente é negra diz que é branca. É como se o sistema colocasse uma venda nos olhos dessas pessoas pra elas não se enxergarem e não saberem o que isso significa na vida delas”, afirma.

Por isso, Daniela considera ainda mais necessária a política de cotas raciais para todos os órgãos públicos do Ceará. Só assim, com pessoas negras em cargos importantes, outras pessoas negras vão compreender que ser negro não é estar fadado ao fracasso, aos baixos salários, à exploração e a uma vida sem qualidade. Ao garantir a presença de defensores negros cotistas, a DPCE manda um recado pra população que atende, de maioria negra. Ela diz: “você também pode estar aqui, e não é só como alguém que precisa do nosso serviço”. É mudar a narrativa de uma história que sempre foi contada pela perspectiva das mesmas pessoas: as brancas. E isso não quer dizer que a versão dessas pessoas não seja importante. Não é sobre isso. É sobre admitir que ela não é a única. Não pode ser a única. Afinal, se a sociedade é diversa, a Defensoria também deve ser.

“Acho que é utopia a gente dizer que vai chegar num momento que a política afirmativa não vai ser necessária. Pelo menos a curto prazo. Mas o ideal seria se a gente estivesse num ambiente tão plural que a gente parasse de ser exceção. Que fosse absolutamente comum. A gente tem condições de chegar nisso, mas ainda é muito distante. Ao mesmo tempo, não dá mais pra voltar. É pra frente que se tem que ir. Nós precisamos ampliar e aprimorar as cotas. A nossa existência na instituição é esse debate acontecer da porta pra dentro. Porque a questão é muito maior do que só entrar. É permanecer e fazer transformações”, finaliza Daniela Melgaço.

Esta reportagem integra o especial Frente Negra da Defensoria, que narra as histórias de vida dos primeiros cotistas negros da DPCE e revela bastidores do ano inicial de atuação deles. Para ler as demais matérias, clique aqui.