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Lara, de fato, direito e amor: Justiça autoriza mudança de nome e gênero de adolescente em documentos

Lara, de fato, direito e amor: Justiça autoriza mudança de nome e gênero de adolescente em documentos

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A espera durou quatro anos. Foram dias amanhecidos e adormecidos na expectativa de ser, enfim, inteira. De fato, direito e amor. Já era de fato, por entender-se mulher. Igualmente era de amor, pelo abraço de mãe e pai. Faltava ser de direito, com o reconhecimento do Estado. Não falta mais. Nessa quarta-feira (20/10), a Justiça reconheceu que Lara Mendes Magalhães Torres pode (deve!) ser Lara Mendes Magalhães Torres também no papel.

Hoje com 16 anos, a garota sentiu aos 12 não estar em conformidade com o próprio gênero biológico. Era menina, não menino. E assim queria ser chamada. Lara. Em junho deste ano, acompanhada de quem a gerou e primeiro a acolheu nesta descoberta, ingressou com ação de retificação do registro civil, a primeira feita pelo Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública Geral do Estado (DPCE) para uma adolescente.

Menos de quatro meses depois, Lara começa a constatar o quão perto é o amor. “Vivi muita coisa, em todos os lugares, nesses quatro anos desde que percebi a minha não conformidade com o gênero masculino. Passei por situações vexatórias. Agora, com a mudança no meu registro, vou poder tirar novos documentos e não vou precisar ficar dando explicação de que o menino no documento sou eu. Vou poder, finalmente, ser reconhecida como uma pessoa do gênero feminino. O coração tá batendo muito forte”, afirma a jovem.

A mãe, toda orgulho, também tem um coração que não cabe em si, tamanha a felicidade. E alívio. “O sentimento agora é de que a gente vai conseguir evitar muito sofrimento futuro. Não que isso vá isentar a nossa família de passar por outras situações, porque a gente vem de uma luta constante. Desde que ela nos falou que era uma menina trans, é uma luta atrás da outra. Mas ter o nome alterado nos documentos vai evitar muita coisa. Ela não vai precisar se alistar para as Forças Armadas, por exemplo, que era algo que ela não queria e a gente temia muito”, cita Mara Beatriz Mendes Magalhães.

Pode parecer pouco, mas o novo nome vai permitir a Lara – de fato, direito e amor – evitar pequenos-grandes embaraços na vida já oprimida de qualquer pessoa LGBTQIAP+. Na matrícula da escola, na ida ao médico, na realização de um exame, no check-in da viagem com os pais, tudo vai ser mais natural. Menos doloroso. Como teria de ter sido desde o princípio. Como pode ser agora. Como deve ser sempre.

“As pessoas olhavam torto, cochichavam, ficavam se cutucando quando ela era chamada pelo nome do documento e precisava ficar dando explicação, provar que ela era ela. São coisas que pra quem está de fora não têm importância e pra mim doíam muito. Tem hora que a gente cansa de ficar dando explicação. Vivemos tempos de tanta informação e as pessoas continuam escolhendo ser ignorantes”, recorda a mãe.

Atuante no caso na 3a Vara da Infância e Juventude de Fortaleza, o defensor público Adriano Leitinho destaca a vitória de Lara, que pavimenta o caminho para outros(as) adolescentes trans pleitearem o mesmo direito. “Os direitos da personalidade são de fundamental importância para o ser humano, pois servem para preservar sua individualidade. Cada ser humano tem sua personalidade e características que o torna diferente dos demais. O nome da pessoa é um dos direitos de personalidade mais importantes e deve refletir a vida e a imagem do sujeito. A decisão judicial trouxe de volta a dignidade humana para a vida da adolescente, que, enquanto sujeito de direito e pessoa humana, também tem o direito de ver sua personalidade respeitada e seus direitos efetivados”, afirma.

Agora, a família aguarda o processo transitar em julgado e a expedição de um alvará judicial para dirigir-se a um cartório e solicitar a correção na certidão de nascimento de Lara. Será o primeiro passo para a garota alterar todos os demais documentos. E viver com uma preocupação a menos.

“Quando a pessoa é menor de 18 anos, a gente judicializa o pedido pra retificar. Quando é maior de 18 anos, fazemos administrativamente porque existe resolução do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] que obriga os cartórios a fazerem isso. O cerne da questão é: quem vai definir o próprio gênero e nome é a pessoa. Quem diz quem eu sou sou eu. A decisão judicial em favor da Lara é importante porque assegura um direito constitucional das pessoas de se autodeclararem. Porque a autodeclaração é um direito inerente à pessoa humana. É pra estar com a certidão nova na mão até o fim de novembro”, projeta a supervisora do NDHAC, defensora pública Mariana Lobo, que deu entrada na ação de retificação em junho deste ano.

Só este ano, de 1º de janeiro a 21 de outubro, o NDHAC deu entrada em 140 pedidos de retificação de nome e gênero no registro civil (de assistidos(as) de todas as idades, incluindo Lara). O número supera a demanda de 2020 inteiro (67 casos), assim como o cenário pré-pandêmico de 2019 (122 solicitações) e os anos de 2018 (75 ações) e 2017 (17 processos).

Lara quer se envolver em causas humanitárias. Na psicologia, no direito ou até mesmo no jornalismo, seguindo os passos da mãe, quem sabe. “Quero ajudar as pessoas”, sentencia a adolescente. É o futuro que parte.

MAIS CASOS
Um outro caso de retificação em adolescentes aconteceu em março de 2021, dentro do sistema socioeducativo. A solução chegou em dois meses com decisão proferida em maio do mesmo ano. O defensor público Rubens Lima percebeu que a demanda causava “constrangimento do adolescente dava-se em todos os ambientes”. “Percebemos durante nossos atendimentos e em audiência que não se tratava da necessidade de uma mera defesa processual, mas de, mais do que isso, restabelecer a dignidade daquele adolescente, adequando sua situação física e mental ao seu tratamento formal”, remonta.

Ele explica que era um caso de um adolescente intersexual (que nascera com órgãos genitais masculino e feminino) que, embora tenha sido registrado como mulher, compreendia-se como do gênero masculino. Para o defensor, alterar nome e gênero era reafirmar sua dignidade. “A ação de alteração de seu prenome e gênero do seu registro de nascimento e de garantias de que o Estado, mais do que uma mera adequação formal veio como forma de assegurar dignidade aquele adolescente, dando-se ainda mais relevo ao papel da Defensoria de não apenas proceder à uma análise e defesa formal processual, mas sobretudo de assegurar a proteção e o resguardo ao melhor interesse da criança e do adolescente em todos os aspectos”, assegura.

Já no NDHAC, agora em outubro, a defensora Mariana Lobo acolheu outro caso de uma mãe de adolescente e já judicializou. Espera que sentença seja célere, como tem sido, já que quem precisa assegurar direitos tem pressa. Este novo caso veio como a indicação da mãe da Lara, numa demonstração de que há um fluxo corrente entre pais e mães, transformando a vida de todos (a) os (a) filhos (a).

 

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