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Pelo direito de existir: Defensoria atua em ação judicial para mudança de nome e gênero em adolescente

Pelo direito de existir: Defensoria atua em ação judicial para mudança de nome e gênero em adolescente

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A garota assina como quem desenha uma obra de arte e sabe que, antes de tudo, a gente existe primeiro no nome. São quase 40 segundos para escrever quatro palavras e uma vida: Lara Mendes Magalhães Torres. Ela traça cada letra tal qual uma pintura, com toda a delicadeza e força que o nome representa.

Aos 16 anos, ela reivindica a própria identidade. Nasceu menino, mas se agarra ao desejo de como quer ser chamada. No feminino. É assim que se identifica. Por isso, procurou a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) para dar entrada na ação de retificação de nome e gênero no registro civil, a primeira do tipo feita pelo Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC).

No rosto, o alívio. De mãos dadas, o pai, Jânio Magalhães Torres, e a mãe, Mara Beatriz Mendes Magalhães, eram só emoção. Mas, mesmo com o apoio da família, Lara conhece desde cedo os caminhos turbulentos a serem enfrentados para garantir seu direito à personalidade, expresso na Convenção de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

“Desde a infância, percebi minha não conformidade com o gênero masculino e aos 13 anos as situações de bullying tornaram-se ainda piores, pois me assumi como trans na escola. Eu quero ter meu registro retificado com a maior urgência possível, porque todas as vezes que preciso mostrar algum documento de identificação tenho que me explicar, muitas vezes na frente de terceiros, o que sempre me causa extremo mal-estar. Esse nome masculino não me representa e quero removê-lo definitivamente da minha vida”, reforça a garota.

Lara recorda da transfobia sofrida na escola, manifestada por alunos, pais, professores, funcionários, coordenadores e diretores. Eram piadas, palavras agressivas, desrespeito ao nome social, isolamento e até privação do uso do banheiro feminino. “No fim do ano letivo, meus pais foram procurados pela direção, que negou minha matrícula para o ano seguinte na escola na qual eu estudava desde os dois anos de idade”, relembra.

Era 2017 quando isso aconteceu. A justificativa? Que a família procurasse uma escola em condições de “atender às necessidades” da adolescente. O caso foi denunciado à Delegacia de Combate a Exploração da Criança e Adolescente (Dececa) como transfobia. Começava ali uma luta por igualdade e para vencer o preconceito. Porque ser trans não é uma escolha. É uma condição de existência. Ou seja: a pessoa só consegue viver com qualidade se respeitada no gênero com o qual se identifica.

Os pais de Lara, cientes desse conceito, acolheram a filha e não ficaram no anonimato. O caso ganhou repercussão na imprensa e Mara hoje é uma das vozes ativas da Associação Mães pela Diversidade no Ceará. “Tomei para mim, sem muita resistência, o que me foi dado: a tarefa de remar em mares intranquilos. Enfrentamos ondas gingantescas, uma após a outra, mas também pequenas marolinhas de fazer brincar e sorrir ao sol por uns instantes. A ida na Defensoria para dar entrada na retificação de nome e gênero da minha filha deixou de ser um sonho para se tornar realidade em nossas vidas e encher nossos corações de esperança por um mundo com mais amor e respeito”, frisa a mãe.

MENOS BUROCRACIA
Desde março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a identidade de gênero como direito humano e algo que pode ser obtido apenas por meio de uma autodeclaração, não sendo mais necessário apresentar tratamento hormonal, laudos médicos ou comprovantes de cirurgias. Basta ir diretamente ao cartório de registro para realizar essa modificação. Quem não pode custear as taxas que são cobradas, deve buscar a Defensoria Pública para atestar a hipossuficiência. Nos casos de crianças e adolescentes, é preciso judicializar a ação.

“A decisão do STF garantiu esse direito fundamental da personalidade e ao reconhecimento da identidade de gênero de qualquer pessoa. Realizamos a escuta da família, estamos com toda a documentação e ingressamos com a ação para assegurar o direito à identidade de gênero e ao prenome da Lara nos documentos de registro civil, um direito que advém da Constituição Federal e dos pactos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário”, destaca a supervisora do NDHAC, defensora pública Mariana Lobo, que acompanha o caso.

Antes da decisão do STF, todos os pedidos eram solucionados por decisão de um juiz. Em 2017, o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria deu entrada em 17 ações judiciais de retificação de nome e gênero no registro de nascimento de pessoas transexuais. No ano seguinte, esse número passou para 75 procedimentos. Já em 2019, um ano após a decisão do STF, foram 122 procedimentos administrativos, um aumento de 62% nos pedidos sem a necessidade de judicialização.

Em 2020, os atendimentos foram afetados pelo isolamento social decorrente da pandemia e 61 pessoas procuraram o órgão para dar entrada na retificação de nome e gênero. Já neste ano, o NDHAC tem até o momento 64 pedidos. Todos os atendimentos estão acontecendo ainda de forma remota, por conta do novo coronavírus (Covid-19).

“Estamos recebendo em média de cinco pessoas por semana querendo orientações sobre esse procedimento. A ação da Lara é a primeira ação de retificação de nome e gênero para uma adolescente que estamos fazendo. Ela poderia esperar pouco mais de um ano e fazer isso de forma administrativa diretamente, no cartório. Mas é mais um ano de constrangimentos que ela enfrentaria. Estamos sendo pioneiros e abrindo portas para quem vem depois, e isso é muito importante para que outros adolescentes possam ter a Lara como referencial e encontrar na Defensoria esse porto seguro”, comenta Mariana Lobo.

O pai de Lara estava visivelmente emocionado durante o atendimento na Defensoria. “Estou muito aliviado em poder dar esse passo. Para nós, está sendo um alívio porque desde os 12 anos dela a gente vem nessa luta, tendo que se explicar e se justificar em todos os lugares em que a gente chega. Então, o dia de hoje significa um grande passo para a nossa família. A esperança e a positividade estão do nosso lado e são grandes”, afirma Jânio.

SERVIÇO
Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas – O NDHAC atua em ações e atividades relativas à proteção dos Direitos Humanos, envolvendo especialmente a preservação e reparação dos direitos de grupos sociais vulneráveis e de pessoas vítimas de tortura, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência.

Devido à pandemia do novo coronavírus (Covid-19), a Defensoria Pública do Ceará atende preferencialmente de forma remota. No site www.defensoria.ce.def.br há um banner vermelho com os contatos de telefones e e-mails de todos os núcleos especializados da instituição e das cidades que contam com a atuação de defensores públicos. Os contatos do NDHAC são: 

  • Telefone: (85) 98895-5514 / (85) 98873-9535
  • E-mail: ndhac@defensoria.ce.def.br