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Lei Mariana Férrer entra em vigor: menos revitimização da mulher, mais respeito e mais denúncias

Lei Mariana Férrer entra em vigor: menos revitimização da mulher, mais respeito e mais denúncias

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Quando uma mulher sofre violência, todo o esforço da rede de proteção é para ela não ser exposta a uma revitimização. Tenta-se ao máximo preservar a dignidade da vítima, evitando, por exemplo, que ela conte diversas vezes, a várias pessoas diferentes, como o crime aconteceu, que corra o risco de encontrar o agressor e o mais importante: diz-se a ela que, independente de como o crime aconteceu, a culpa sempre é do agressor, não da mulher. Nunca da mulher. A despeito disso, a vítima, especialmente a de violência sexual, muitas vezes foi exposta a situações vexatórias no transcorrer do processo. Agora não mais.

Graças a uma nova previsão legal, estão proibidos todos e quaisquer atos que atentem contra a dignidade de vítimas e testemunhas durante audiências criminais. A Lei Mariana Ferrer (nº 14.425), como é chamado esse dispositivo em alusão ao caso da modelo e blogueira mineira ocorrido em 2018, já está em vigor e tem a expectativa de reduzir a revitimização (e, consequentemente, assegurar mais respeito a quem sofreu a violência) e elevar as denúncias.

Supervisora do Nudem, a defensora Jeritza Braga diz que a lei “entrou em vigor em muito boa hora”. A Lei chega no marco dos 21 dias pelo fim da violência contra a mulher, que encerra amanhã (dia 10 de dezembro). Durante este período, a Defensoria fez atividades com duas comunidades e participou, ao lado de outras instituições, da campanha Voz para Todas, que reforça o  enfrentamento à violência doméstica e repercute os 15 anos da Lei Maria da Penha.

Jeritza pondera que a dignidade da pessoa humana é elemento basilar da Constituição Federal e acrescenta que “a lei não beneficia só mulheres, porque homens também podem ser vítimas de violência”. Ela alerta, no entanto, que vítimas femininas são submetidas a constrangimentos de forma recorrente. “Essa lei evita que advogados tragam para as audiências situações alheias ao processo, fatos do passado ou quaisquer outras coisas que tentam estigmatizar a mulher. Muitas perguntas ferem a dignidade da vítima, deixam a mulher numa situação ainda mais constrangedora e não são importantes para provar o que está ali em questão: falam de roupa, se ela estava sozinha, por que foi por aquele caminho etc. São perguntas que acabam culpabilizando a mulher, quando nós temos é que destacar o papel dela de vítima nesses processos”, afirma Jeritza Braga.

“A Lei Mariana Ferrer aumentou a pena para o crime de coação no curso do processo, se este envolver crime contra a dignidade sexual. Além disso, a lei visa a impedir humilhações e atos contra a dignidade de vítimas e testemunhas durante audiências criminais, especialmente em processos que digam respeito a crimes sexuais, através da previsão de punições a todos que atentarem contra a dignidade dessas pessoas”, detalha a defensora pública titular do Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública Geral do Estado (DPCE), Noêmia Landim.

Esse cenário anterior à vigência da lei, acredita a defensora, desestimulava as mulheres a buscarem ajuda ou mesmo a denunciarem a violência. Isso porque os casos tendiam a desfechos como o de Mariana Ferrer, cujo acusado de estupro foi inocentado sob a alegativa de falta de provas após os advogados fazerem uma série de ilações a respeito da conduta da jovem no episódio. Os ataques à modelo durante as audiências chocaram juristas, inflamaram movimentos em defesa dos direitos da mulher e resultaram na criação de uma legislação específica à coibição da prática.

Agora, com a lei em vigor, a supervisora do Nudem acredita que mais denúncias vão surgir. “Elas vão perceber, com o tempo, que o tratamento para elas mudou no decorrer do processo e no atendimento como um todo e elas agora estão realmente sendo ouvidas, respeitadas e valorizadas. E que o crime vai ser apurado sem ela ter que passar por todo um constrangimento, sem ter a vida pessoal invadida, sem ter fotos expostas, sem tentarem estigmatizá-la de nenhuma forma. Porque ela pode ter sido vítima de vários crimes em uma só ocorrência de violência”, pontua Jeritza Braga.

As defensoras destacam a importância da Lei Mariana Ferrer na dignidade das vítimas. Mesmo sendo vedada em qualquer circunstância da tramitação processual a prática de constrangimento de vítimas e testemunhas é estrutural, estando solidificada nas estruturas patriarcais e machistas da sociedade brasileira.

“Quando é vítima de agressão, principalmente a sexual, como foi a Mariana Ferrer, a mulher tem a figura masculina com vilã, como alguém que ela quer distância. Se você passa por uma situação dessa, vai à delegacia em busca de ajuda e se depara com um homem, é muito difícil lidar. Elas têm vergonha e medo de não dar em nada. Agora, se você não respeitar, vai estar cometendo crime”, reforça Jeritza Braga.

RELATO PESSOAL (E COLETIVO)
Autora do livro “A vida nunca mais será a mesma”, a jornalista cearense Adriana Negreiros parte de uma experiência pessoal de estupro para narrar a história de milhões de mulheres – mas que, a despeito disso, ainda é tabu. Apesar de necessário e urgente, o combate à cultura da violência ainda é difícil até no mais basilar dos atos, a fala. Por isso, a jornalista classifica a Lei Mariana Ferrer como “um instrumento poderoso para combater as desigualdades de gênero, bem como um avanço no sentido de tentar coibir a culpabilização das sobreviventes de violência sexual.”

Ela acredita que a norma resultará em algo fundamental para mulheres denunciarem as violências diárias que sofrem. “Se devidamente aplicada, [a lei] dará a muitas mulheres a segurança de que não serão humilhadas e constrangidas caso decidam ir à justiça contra seus agressores. O estupro causa muita vergonha a quem sobreviveu a ele, por diversos motivos. Na sociedade patriarcal em que vivemos, é comum que se atribua às vítimas de violência sexual parte ou a totalidade da culpa pelo crime. Isso está não apenas na mentalidade de muitos, como também na base do nosso ordenamento jurídico. O judiciário brasileiro ainda é bastante machista, o que contribui para que essa mentalidade prevaleça em diversos julgamentos. O fato de poucas juízas ascenderem às altas cortes, por exemplo, é um sinal de desigualdade de gênero”, analisa Adriana Negreiros.

O componente racial é outro aspecto que a escritora aponta como importante de ser notado no debate da violência, pois são as mulheres negras as vítimas mais recorrentes de violência no Brasil. Uma herança cruel de um país cujo passado, recente e colonial, ainda ressoa. “Se mulheres, no geral, são tratadas como objetos à disposição do deleite masculino, isso é potencializado no caso das mulheres negras. E o estupro é um crime de tal maneira degradante que não há como alguém sentir-se confortável em falar a respeito. É de tal maneira constrangedor, embaraçoso e devastador que é comum sobreviventes preferirem manter-se no silêncio, na esperança de que o silêncio seja mais poderoso do que a dor. Há de citar-se ainda o fato de que sobreviventes de crimes sexuais sentem muito medo e, acuadas por esse sentimento, muitas preferem o casulo à exposição.”

Adriana alerta também para um tipo de crime muitas vezes ignorado: o estupro praticado por maridos. Não, mulher casada não é obrigada a manter relações com o companheiro! Se não tem vontade, diz não e, ainda assim, o parceiro força o ato, é estupro. Além disso, há a violência contra crianças e adolescentes, que de forma corriqueira é praticada por pai, tios, padrastos, primos, avôs, irmãos, vizinhos, amigos da família… “Em muitos casos, essas vítimas nem sabem como denunciar os criminosos. Em outros, as vítimas põem a vida em risco ao fazê-lo. Há também de se considerar que sobreviventes de violência sexual muitas vezes são tidas por mentirosas. É raro alguém duvidar de um relato de assalto à mão armada, mas a denúncia de estupro usualmente lança a vítima em uma atmosfera de dúvidas. Será que foi isso mesmo? Será que ela não “facilitou”? Será que não é exagero?”, instiga a jornalista e escritora.

SERVIÇO
NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DA DEFENSORIA
Celular: (85) 3108.2986 – 8h às 12h – 13h às 17h
Celular: (85) 9.8949.9090 – 8h às 12h – 13h às 17h
Celular: (85) 9.8650.4003 – 8h às 12h – 13h às 17h
Celular: (85) 9.9856.6820 – 8h às 12h – 13h às 17h
E-mail: nudem@defensoria.ce.def.br

Atendimento Psicossocial
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