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Por mais negros e negras em espaços de poder!

Por mais negros e negras em espaços de poder!

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Uma mulher negra como apresentadora de um telejornal nunca é apenas uma mulher negra à frente de um telejornal. É um recado às demais mulheres negras sobre elas também poderem ocupar aquele lugar. Ou qualquer outro. Caso desejem e tenham oportunidade para isso, é possível trilhar caminhos de sucesso no que quer que se proponham. Empresárias, atrizes, atletas, influencers, cantoras, defensoras, juízas, promotoras, desembargadoras, ministras… O mesmo vale para os homens. Antes, no entanto, todas, todos e todes precisam ter em quem se espelhar.

Agora pense: qual foi a última vez que você assistiu a um filme no qual o personagem principal era negro? Quantos negros frequentam o mesmo curso que você na faculdade? Quantas pessoas negras trabalham com você hoje? E mais: em quais cargos? Você já teve um chefe negro ou uma chefe negra? As respostas dessas perguntas fornecem um indício importante do porquê de uma palavrinha estar em voga no debate público brasileiro sobre relações raciais: representatividade.

Falar sobre o tema ainda é urgente. Porque o mesmo Brasil cuja maioria da população (56%) é preta ou parda é o país no qual apenas dois em cada dez trabalhadores afirmam ser chefiados por negros(as). Esse estudo, do Instituto Locomotiva, demonstra o quanto o país tem a avançar se quiser reverter esse quadro (de 78% dos cargos de chefia ocupados por homens e mulheres brancos(as)) e tornar-se de fato numa potência.

É preciso observar o mundo ao redor e enxergar diversidade – ou a necessidade dela. Um exercício de fôlego, um treino do olhar que a dona de casa Luíza Helena, de 59 anos, domina bem. Mulher negra assistida pela Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (DPCE), ela destaca a relevância de encontrar pessoas semelhantes ocupando espaços de poder. “Que o preto e o crespo não estejam somente do outro lado, que não sejam só os pobres que precisam de ajuda, mas que nós também possamos ser os que podem ajudar. Quem sabe, um dia, um afilhado meu venha trabalhar aqui!? Se ele quiser, ele pode”, determina.

No Ceará, o contexto da representatividade ganha ainda mais peso. Muito embora tenha, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 72,5% da população autodeclarada negra, o estado ainda enxerga pouco o potencial de pretos e pardos, o que leva à sub-representação dessas populações na política, na educação e na saúde.

Coisa que Virgínia Ramos, de 33 anos, percebeu cedo e hoje luta por mudança. Tem em um dos ofícios a prática por um futuro possível. Um afrofuturo, tempos nos quais negros e negras terão as mesmas chances de uma vida vivida com a mesma qualidade que pessoas brancas. E isso necessariamente passa por uma maior representatividade. “É muito importante que nós nos vejamos e nos reconheçamos como ocupantes de qualquer espaço”, afirma ela, que se divide entre socioeducadora e artesã na confecção de bonecas negras. Encontrou nos brinquedos não somente uma forma de renda.

Nascida numa família de artesãos e artesãs, Virgínia foi a primeira a produzir bonecas pretas. “Eu nunca tive muitas [bonecas], principalmente pretas. Mas depois que uma irmã de um convento me ensinou a fazer, aquilo ficou guardado na minha memória. Conheci algumas meninas da Feira Negra que me incentivaram a começar a confeccionar bonecas de fuxico, todas à mão, e hoje eu vendo. Mas quando comecei meu negócio tinha 30 reais. Escolhi fazer bonecas negras porque sempre procurei algo que me representasse no mercado.”

No começo, ela lembra, cada boneca custava R$ 1. E foram recorrentes os relatos para ela desistir. Diziam a ela ser desimportante algo que Virgínia considerava essencial. “Lembro de um dia que fui em uma loja e pedi para ver bonecas pretas e a moça disse que não tinha, pois não havia necessidade de ter uma boneca negra lá. Se eu tivesse ganho bonecas pretas e tido outras referências pretas, o encontro comigo mesma não teria demorado tanto”, avalia.

Hoje no nível mais elevado da carreira, atuando na instância mais alta da Justiça estadual, a defensora pública Liduína Freitas, de 71 anos, sabe do muito que a sociedade ainda precisa mudar para termos espaços e órgãos públicos ocupados de forma equânime. “Uma vez, um assistido entrou na minha sala e perguntou: ‘cadê a defensora?’ Eu olhei pra ele e disse que ela já havia chegado e estava na frente dele. Ele ficou intrigado. Não fez por mal, mas isso ainda é incomum para as pessoas”, recorda.

Com décadas de carreira e tendo testemunhado várias composições do Sistema de Justiça cearense, Liduína é hoje referência para, por exemplo, os defensores que ingressarão na DPCE no concurso que está na iminência de ser lançado. Será o primeiro certame com cotas raciais da instituição, que começou a implementar um programa de ações afirmativas em novembro de 2020, posteriormente transformado em lei aprovada pela Assembleia Legislativa, e hoje já tem colaboradores e colaboradoras cujo ingresso deu-se por essa política.

“Sou de origem humilde, frequentei escola pública e fui a primeira pessoa da família a me graduar. E isso é motivo de orgulho para toda a família. Inclusive, isso foi muito importante para que o meu filho seguisse os meus passos. Ele hoje também segue na carreira jurídica; é advogado e atua no Tribunal de Justiça”, revela a defensora.

Mas “só” representatividade é suficiente? A antropóloga social Izabel Accioly diz que não. E alerta: a proporcionalidade também é necessária. “Nós, enquanto população majoritária, deveríamos estar representados em todos os espaços de maneira equivalente e isso ainda não está acontecendo. Precisamos furar as bolhas e conquistar nossos direitos. Durante toda a minha infância e juventude, eu só tive a oportunidade de ter uma professora negra. Isso me marcou profundamente, pois foi a primeira vez que eu senti que eu era vista e notada. Hoje, eu sendo professora, percebo que muitas das minhas práticas em sala de aula são inspiradas em coisas que aprendi sendo aluna dela. Viu só a importância?.”

Ela reflete que o atual cenário – de baixa representatividade de pessoas não-brancas – ainda é reflexo dos 338 anos da escravidão no Brasil, que foi o último país do continente americano (e um dos últimos do mundo) a libertar negros e negras. E o fez por questões muito mais econômicas e de políticas internacionais do que propriamente sociais (por ser moralmente um equívoco, por exemplo). Pesou a mão do mercado e não a consciência da Coroa Portuguesa.

“É bem comum que pessoas negras passem uma vida inteira sem ter referenciais negros, sem verem seu próprio grupo racial representado nesses espaços de poder, de tomada de decisão, na mídia etc. E isso é muito negativo, porque acaba criando uma imagem de que os lugares “bons” não são lugares para gente como eu, que sou uma mulher negra. Quando a gente pensa coletivamente, como uma pessoa branca vai criar políticas púlbicas para atender a contento as necessidades do povo negro? Por mais aliada que seja, essa pessoa continua sendo branca e não sente o peso do racismo. Então, representatividade é sim algo extremamente importante. Mas não somente ela. Temos que ir à proporcionalidade. O Movimento Negro tem se mobilizado cada vez mais para furar bolhas e fazer valer os nossos direitos”, acrescenta Accioly.

 

Amanhã o debate será sobre Afrofuturismo e Empoderamento, aqui no site da DPCE.

 

Confira as matérias do especial:

Por mais negros e negras em espaços de poder!

Assegurar direitos é empoderar o povo negro!

Sobre redescobrir a beleza negra em si!

A intelectualidade negra vem do chão da vida!

Olhar o futuro a partir do passado!

O futuro é de quem sonha (e faz)!