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Sobre redescobrir a beleza negra em si!

Sobre redescobrir a beleza negra em si!

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A mulher Ivone Araújo de hoje, aos 32 e orgulhosa da própria negritude, é fruto de uma construção. Diferente da menina Ivone de anos atrás. Até aqui, foram três décadas se descobrindo bonita em um mundo que impõe padrões de beleza. Aos 12, alisou os cabelos pela primeira vez. Usou químicos e até ferro quente. Queria ficar parecida com as amigas. Mas havia uma diferença crucial entre elas. As amigas eram brancas.

A história de Ivone é a de milhões de pessoas negras. Homens e mulheres que recebem todo tipo de alcunha. Estereótipos que podem ressoar por toda a vida. Bombril, cabelo sarará, negrinho/a… E é a partir deste referencial que se reinventam. Precisam se desconstruir dentro de um processo de aceitação, respeito e reconstrução. É isso ou desmoronar.

“Quando hoje me olho no espelho, vejo uma mulher linda. Mas claro que esse amor próprio não surgiu do nada porque ao longo da minha vida eu sempre fui diminuída. Eu agora sou uma mulher decidida, que gosta da aparência que tem. Sou uma mãe que ensina diariamente as filhas a se amarem e a se aceitarem”, descreve.

Em casa, Ivone prefere falar sobre empoderamento e beleza da cor da pele negra e do cabelo afro no lugar de reduzir a existência dela própria e das filhas aos reflexos do preconceito racial ainda tão presente na sociedade, especialmente na brasileira, cujo mito de “todos temos as mesmas oportunidades”, a tal meritocracia, ainda ser tão forte.

Para ser o que é hoje, a colaboradora da Defensoria precisou – e ainda precisa – reafirmar-se. Na juventude, ela lembra, usou tranças e penteados afro. O começo de uma uma retomada de si. Passou por transição capilar e assumiu os cachos, algo considerado fundamental por especialistas para preservar a autoestima.

É o que diz a pesquisadora em gênero, raça, feminismos negros e decolonialidade Jéssica Carneiro. Segundo ela, “a autoestima não é um produto que você tem ou você não tem”, mas uma construção que, embora tenha componentes psicológicos, é moldada dentro de determinadas condições. Ou seja: não é definido exclusivamente pelo próprio indivíduo, pois sofre influências da sociedade na qual a pessoa está inserida.

“A palavra autoestima é muito cara para a população negra visto que, dentro de um contexto de colonização e supremacia branca, no qual negros e negras são vistos como inferiores e distantes dos padrões de beleza, a humanidade e o direito dessas pessoas ao exercício cidadão foram histórica e sumariamente aviltados. Reconquistar ou reconstruir a autoestima para o povo preto é abrir uma fissura na estrutura cristalizada da desigualdade racial”, explica a especialista.

Em busca de uma aceitação (que sequer deveria existir), a população negra muitas vezes submete-se ou é submetida a uma lógica de apagamento das próprias características, por meio de mudanças estéticas. Homens e mulheres passam a rejeitar traços negróides induzidos pela ideia de que, para serem aceitos, precisam ter uma estética parecida com a das pessoas brancas: a pele deve ser clara; o cabelo, liso; o nariz, afilado; os lábios, não tão espessos; as sobrancelhas, delineadas e finas etc.

Psicoterapeuta infantil, Michele Medeiros revela que tem recebido cada vez mais pacientes negros/as com questões sobre autoestima. A desconstrução do padrão de beleza branco – chamado eurocentrado, em alusão à estética europeia/branca – é uma forte reivindicação dos movimentos negros brasileiros há décadas. “É comum o relato de pessoas que tinham o cabelo crespo e/ou cacheado e que, na busca por pertencimento e aceitação social, alisam os fios e se submetem a técnicas que muitas vezes causam sofrimento físico e mental”, conta a psicoterapeuta infantil.

Segundo ela, com o fortalecimento da autoestima e o desenvolvimento de mecanismos de reconhecimento dos próprios desejos e do que consideram bonito em si mesmas, muitas pessoas optam pelo processo de transição capilar, no fim do qual assumem o formato original dos cabelos. Michele Medeiros considera que essa experiência pode ser um fator importante no resgate da consciência de características físicas.

Foi esse o caso da defensora pública Juilma Silva, hoje com 51 anos. Ela atua no Núcleo de Atendimento de Petição Inicial (Napi), em Fortaleza, e fez transição capilar. “Desde a colonização, predominou muito no Brasil o eurocentrismo, pois o que valia, o que é bonito e o que é bom é o que vem da Europa. Os negros não vieram de lá, por isso que não somos considerados belos. Hoje é que está tendo uma maior valorização do que foi perdido durante todos esses séculos”, afirma.

Para ela, há hoje uma representação na mídia que favorece isso, mas não ainda uma representatividade. Ou seja: mais pessoas não-brancas precisam ocupar espaços de visibilidade e poder. Assim, outras belezas passarão a ser apreciadas e, consequentemente, menos histórias serão atravessadas pela dor de ter que se adequar a uma estética totalmente diferente. A defensora diz que “temos que mudar isso urgentemente. Daí a necessidade de proporcionar cada vez mais o acesso de negros e negras às universidades. Isso é muito importante para as futuras gerações.”

A pequena Catarina de Castro aos seis anos já elege a cor da pele como a característica preferida do próprio corpo. Modelo infantil, a garota é referência para as mais de 25 mil pessoas que a seguem nas redes sociais. “Ela nunca teve um problema com a autoestima dela. Desde pequena, ela sempre se achou linda. Nunca precisei falar. Ela já sabe que é. Inclusive, ela nunca quis ser mais parecida com colegas brancas”, diz a mãe Milena de Castro Santos, de 44 anos.

Com a filha, ela compartilha experiências pessoais, questões sobre moda e autoestima na Internet. E afirma que a maternidade trouxe um novo olhar para a própria negritude. “Aprendi a ser vaidosa e me cuidar mais para cuidar dela [de Catarina]. Me renovei como mãe, como mulher e aprendi a ser mãe novamente.”

Essenciais à autoestima infantil são as experiências em casa. A educação e o afeto são ferramentas necessárias na construção de uma positiva de si mesmo, assim como também são imprescindíveis na desconstrução de padrões que desrespeitam as particularidades da multiplicidade do que é o ser humano e das diversas formas de entendermos a beleza.

“Eu escuto muito por aí que os negros estão na moda agora, numa espécie de reação não muito conformativa de que os traços da beleza negra vieram para ficar. Essa aceitação não foi um movimento passivo por parte da cultura hegemônica [branca], num gesto condescendente de aceitar a diversidade. Não. Essa aceitação foi às custas de muita luta de movimentos organizados e ativistas que, com a ajuda da Internet e das mídias sociais, conseguiram capilarizar as pautas da agenda afro-brasileira e invadiram os espaços midiáticos, acadêmicos, políticos etc. A branquitude está tendo que nos engolir porque sabe que não iremos retroceder”, finaliza a especialista Jéssica Carneiro.

Dando continuidade à série Afrofuturo: por uma consciência negra, amanhã no site da Defensoria discutiremos sobre intelectualidade negra.

 

Confira as matérias do especial:

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