Olhar o futuro a partir do passado!
Quando se vestiu de sonho e procurou a Defensoria, Yara Canta não estava só. Foi, em memória, acompanhada de todas as que a antecederam e não mais figuram por aqui. Queria renascer rodeada de quem a permitiu conquistar um nome condizente com a própria mulheridade. Reverenciou, assim, décadas aguerridas de quem findou, precocemente silenciada, e hoje é ancestral de uma geração ainda na lida pelo direito basilar à existência.
“A luta delas foi um movimento importantíssimo que tornou possível a minha existência e a de tantas outras travestis negras no Brasil. Nossos passos não vêm de hoje. Se sou o que sou é porque percebi que não estava sozinha. Nós rompemos padrões impostos pela branquitude, pelo sistema colonial e cissexista que tenta nos matar a todo instante. Nós criamos vida!”, sentencia.
A busca de Yara pelo direito de se chamar Yara é um jeito de ela ser devota a uma ancestralidade que não se restringe aos antepassados. É perpetuar um modo de existir atravessado pela raça. Por dizeres proferidos e fazeres compartilhados milhares de anos atrás. Palavras e atos que ressoam até hoje. E vão continuar assim enquanto houver quem os preserve.
Para o historiador Hilário Ferreira, viver a ancestralidade é favorecer um encontro com a própria negritude. “A consciência negra é a porta para a busca de uma dimensão muito mais ampla do que a gente imagina. Quando busco minha ancestralidade e quero vivê-la, eu me defronto com o Ubuntu e sou apresentado a um princípio que me coloca no oposto ao capitalismo. Porque o capitalismo não pensa a coletividade e o Ubuntu pensa.”
Em linhas gerais, Ubuntu prega a filosofia do “eu sou porque nós somos”. Trata-se de um saber ancestral africano que enxerga todas as coisas da Terra como interligadas e interdependentes. “As culturas tradicionais africanas hoje se tornam referência de visão de mundo, de sociedade e de processo civilizatório. Isso abre a porta para múltiplas possibilidades. Quando eu, enquanto negro, tomo consciência de mim e passo a ter contato com a minha cultura, com os ensinamentos do meu povo, passo a me achar bonito, a me valorizar, eu começo a perceber de onde venho, de onde os meus vieram e como eles verdadeiramente eram, o que defendiam. Entrar na minha ancestralidade me preenche de forma absoluta”, complementa o historiador.
Viver o legado ancestral é também não se esquecer de si. Não se apagar. É compreender que, em breve, seremos nós os ancestrais de alguém. E, então, você quer ser lembrado pelo quê? Qual ancestral deseja ser pros seus, do futuro? “Embora, em geral, muita gente perca essa referência ancestral por causa da nossa cultura, que é ocidentalizada, pra nós, negros, a ancestralidade é muito importante. O território da nossa ancestralidade são nossos próprios corpos”, afirma o defensor público Breno Vagner Bezerra Vicente.
Nascido no Rio de Janeiro, ele tenta, junto com os pais, resgatar memórias familiares para descobrir a própria origem. Quer ter o direito de saber quem são os ancestrais da mesma forma que a população branca facilmente descobre ter ascendência europeia, norte-americana… “A história negra é marcada pela escravização. Então, necessariamente, é uma história dolorida. Mas não se resume a isso. Temos que abandonar essa ideia de vivermos nossa ancestralidade somente pelo viés da escravização. Precisamos repensá-la, porque houve muita resistência, muita luta e muito saber envolvido. Falar em ancestralidade é olhar o futuro a partir do passado”, acredita.
O defensor afirma que diversas sociedades africanas, mesmo aquelas já extintas, têm ensinamentos para o mundo de hoje. Muitos reinos e tribos, por exemplo, eram matriarcais. A mulher era vista enquanto um ser sagrado, bem diferente do que se vive agora, com o Brasil registrando, em 2020, mais de 105 mil denúncias de violência contra elas.
“Minha ligação com minha ancestralidade tem ficado mais forte com o passar dos anos por conta do conhecimento. Quando você evolui como pessoa, isso te fortalece. Eu enxergo melhor hoje do que quando era mais novo. Quero ser um ancestral que ajude as pessoas a enxergarem o outro de forma mais tolerante e a ressignificar a visão sobre o negro, que ainda é estigmatizada. Precisamos valorizar mais o outro. Temos que nos enxergar mais nas nossas diferenças e valorizar o que todos somos”, pontua Breno Vagner.
Esse culto à ancestralidade é o que a professora Zelma Madeira chama de “sistema de ancoragem”. Um abrir mão daquela visão de mundo colonial, presa à prespectiva de hierarquia entre raças. Onde a humanidade, hoje, deve beber para entender a possibilidade de outros modos de vida, diferentes da lógica do consumo, do ter.
“A gente se ancora nesse sistema pra melhor viver. Ele fortalece o sujeito. Sempre os povos negros fizeram isso e a gente está sempre se apropriando. Eu, por exemplo, sou filha de Iansã. O que é ser filha de Iansã se não ser uma mulher guerreira? Quando a gente fala de sistema ancestral africano, não fala só do individual. Porque ele é coletivo. O que se coloca é sempre a solidariedade. No movimento negro feminino, quando uma sobe puxa a outra”, afirma a assessora especial de acolhimento aos movimentos sociais do Governo do Estado.
Também pesquisadora do tema, Zelma acredita que mais do que nunca o mundo clama por um sistema de ancoragem ancestral, de base africana, negra. “A gente vai na contramão do momento histórico. Mas sempre fomos assim. Sempre estivemos na contramão de um projeto de nação, que vem com a colonialidade. A inventividade nossa não é de hoje. Nunca tivemos um terreno totalmente propício para praticarmos a ancestralidade. Por isso, praticar a ancestralidade é um grande desafio: estamos numa sociedade que não tolera a diversidade, que é autoritária e conservadora. Mas a ancestralidade se presentifica. Ela orienta a gente. É um fundamento pra nortear o tempo presente.”
No fim, ou no começo, a depender da perspectiva, é como ensina a filósofa Katiúscia Ribeiro: “o futuro é ancestral.”
A série Afrofuturo: por uma consciência negra encerra nesta terça-feira (23/11) discutindo futuro. Não perca!
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